DHQ: Digital Humanities Quarterly
2020
Volume 14 Number 2
2020 14.2  |  XMLPDFPrint

Reconstruir histórias da conservação da natureza na Califórnia: 1850 – 2010

Reconstructing Histories of Nature Conservation in California: 1850-2010

Maria J.Ferreira dos Santos  <maria_dot_j_dot_santos_at_geo_dot_uzh_dot_ch>, Department of Geography, University of Zurich

Abstract

Este artigo descreve a experiência da autora em criar uma plataforma digital para revelar, levantar hipóteses e transmitir conhecimento histórico sobre a conservação da natureza na Califórnia desde 1848, estado norte-americano pioneiro nas ideias da conservação da natureza. A riqueza natural da Califórnia aliada com empreendedorismo, levaram a que a conservação da natureza tenha estado, desde muito cedo, enraizada na legislação e na forma de agir do governo do estado e dos seus habitantes. No entanto, estas ideias têm sido desafiadas por processos intrinsecamente associados ao progresso, especialmente o crescimento exponencial da população e do tecido urbano, e a necessidade cada vez maior da implementação de outros usos do território e de utilização de recursos naturais. A ideia por detrás do projeto é realçar a história da conservação da natureza no estado, visualizar o seu progresso através do tempo, e analisar os fatores socio-económicos e ambientais determinantes para o seu desenrolar durante os últimos 160 anos. A relevância do artigo está em contribuir para o aprofundamento da discussão decorrente do desafio posto pelo crescimento demográfico e urbano. Nesse sentido, a plataforma digital proposta, ao coletar, armazenar e distribuir dados, bem como explorá-los de modo inovador, tem o mérito de estimular a atividade intelectual e levantar novas hipóteses para enriquecer o nosso conhecimento multi-disciplinar sobre a intersecção da história com muitas outras disciplinas.

I. Introdução

A emergência das humanidades digitais aplicadas à história tem levado a descobertas que eram anteriormente limitadas e tem revelado novas “histórias”, hipóteses e formas de obter e transmitir conhecimento histórico. A história digital permite uma visão mais globalizante do passado, através de uma maior exploração dos dados e contexto por diferentes utilizadores, e uma interpretação de dados históricos num contexto digital que permite cruzar os dados de uma forma mais abrangente, analisar os dados com outras técnicas que anteriormente eram reservadas a outras disciplinas e que atualmente estão incrementalmente disponíveis para o estudo da história. Através destas ferramentas digitais também é possível uma maior compreensão do contexto espacial e temporal no qual a história se enquadra, desvendar novas “histórias”, possibilitando, desta forma, disseminar o conhecimento histórico e torná-lo atual, futuro e mesmo intemporal. O argumento a favor das humanidades digitais passa por um aglomerar de vantagens que estas plataformas digitais proporcionam reconstruir não uma, mas várias histórias sobre o mesmo tema, período, padrão e processo histórico. As tecnologias digitais permitem também cruzar períodos históricos e produzir visões mais englobantes das transições e legados entre períodos históricos, através de estudos comparativos executados de uma forma sistemática. Estas visões holísticas permitem elucidar até que ponto estes legados condicionam a história futura e desenvolver novas formas de criar conhecimento de uma forma colaborativa. Finalmente, as plataformas digitais permitem a descoberta da história por vários utilizadores, não sendo vedada aos tradicionais alunos na sala de aula, ou nos acervos, mas estando disponível para qualquer utilizador da internet, qualquer curioso, ou profissional de variadas disciplinas. A plataforma digital é criada para fomentar diálogo e enriquecer o nosso conhecimento de uma forma trans-disciplinária.

II. Reconstruir histórias da conservação da natureza na Califórnia

Este projeto começou em 2012 e teve como objetivo reconstruir a história da conservação da natureza no estado da Califórnia[1]. Em 1864, o então presidente dos Estados Unidos da América, Abraham Lincoln, ofereceu ao estado da Califórnia 20,000 acres de terra pública. Esta terra, sobre um contrato chamado land grant (Bolsa de Território), viria a tornar-se, mais tarde, no Parque Nacional de Yosemite e no Mariposa Big Tree Grove [Sellers 1997]. Em 1880, o estado da Califórnia deu os primeiros passos na preservação do seu património natural, ao impedir o corte desmedido de árvores, principalmente de uma árvore emblemática do estado – red wood (Sequoiadendron giganteum), para a construção da rede ferroviária e para outras atividades econômicas. Este primeiro passo foi uma resposta à grande migração para o Oeste, durante o período da Gold Rush (Corrida ao Ouro; o chamamento da riqueza instantânea através da garimpa de ouro nas montanhas da Califórnia), altura em que houveram muitos projetos, iniciativas e subsídios (através de direitos a um rancho e a sua terra envolvente) para atrair nova população para a Califórnia. Já no século vinte, em 1930, o estado emite um requerimento para que os primeiros estudos descrevendo a localização dos recursos naturais sejam conduzidos. Nesses estudos iniciais, os recursos naturais foram mapeados, quantificados e priorizados, permitindo ao estado fazer um primeiro plano para os proteger [Olmstead 1929]. O crescimento urbano desmedido após a Segunda Grande Guerra criou grandes pressões sobre o território e sobre os recursos naturais do estado, o qual, desde então, tem tratado de resolver estas questões de cessão [ou distribuição] do território através de designação de territórios herdados dos períodos históricos e concessão de outros territórios para aquisição pública e privada [Santos 2014a]. Hoje em dia, para preservar a grande riqueza natural do estado da Califórnia – designado como uma das regiões do nosso planeta que alberga uma enorme biodiversidade - cerca de um terço do seu território é reservado e portanto sem (quase nenhuma) à atividade humana. O presente projeto procura contribuir para o emergente campo da história da conservação, examinando o processo da aquisição das áreas protegidas para a conservação da natureza, que datam desde a década de 1850 na Califórnia. Nenhuma perspectiva ou narrativa é suficiente para encapsular esta história. Como resultado, o trabalho realizado integra várias histórias desenvolvidas por diversos investigadores da equipa de “Reconstrução da História da Conservação da Califórnia”, da Universidade de Stanford nos Estados Unidos da América[2]. A metodologia escolhida, os sistemas de informação digitais tem o grande poder de permitir servir de sistema de gestão, armazenamento, visualização e análise de dados espaciais de diferentes formatos que são operacionalizados de uma forma consistente, e operacionalizados. Escolhemos a plataforma digital porque esta permite o armazenamento de dados já existentes, a coleta de novos dados, a distribuição da informação recolhida, a exploração de dados de formas inovadoras, o ensino da história e de humanidades digitais, e o estimulo à atividade intelectual, permitindo levantar novas hipóteses e enriquecer o nosso conhecimento trans-disciplinário. Nas ultimas décadas tem havido um enorme crescimento no uso de plataformas digitais no estudo das humanidades – humanidades digitais, que recorre a plataformas digitais para recolher dados, aumentar arquivos, distribuir informação e aumentar o nosso conhecimento nestas áreas. Várias formas existem de utilizar humanidades digitais no estudo da história da conservação da natureza, desde criação de base de dados, a visualização e análise. Neste artigo eu foco-me na visualização como uma forma de mostrar através de design baseado em dados históricos colocados num contexto espacial, como é que o estado da Califórnia foi adquirindo diferentes áreas de conservação enquanto permitindo desenvolvimento. O uso da tecnologia permite um acesso maior a esta informação, permite aceder a dados e a garantir um método sistemático de inquérito com base na visualização espacial. Nas secções seguintes estas perspectivas são identificadas e exploradas no contexto do projeto e das humanidades digitais em geral.

III. Humanidades digitais como forma de colheita, armazenamento e distribuição de dados históricos

Através de ferramentas digitais, a história pode ser apresentada recorrendo a várias representações, gradualmente mais complexas. Uma primeira forma de representação de história como disciplina em formato digital passa pela digitalização de coleções e outros dados de arquivos, acervos, reconstruções, etc. Um dos argumentos fundamentais para a digitalização é o facto desta permitir que o formato de coleções digitais obtenha ou mantenha a sustentabilidade dos dados históricos e permita a sua intemporabilidade. O formato digital permanece de uma forma intemporal, desde que a tecnologia seja mantida para garantir o acesso aos dados, haja um arquivo guardado em rede com múltiplas cópias para assegurar a existência desses dados, e os processos digitais mantidos e atualizados para garantir a perpetuidade. Estas coleções digitais podem simplesmente corresponder a uma base de dados de eventos históricos, como por exemplo a base de dados de eventos de história natural da Universidade da Califórnia Berkeley[3]. Outros exemplos incluem o acervo de São Paulo[4] ou as coleções da “network” Europeana[5]. Estas coleções em formato de bases de dados permitem a existência e disponibilidade de um catálogo dos dados históricos e um aumento da informação na qual a interpretação histórica possa ser baseada.
No âmbito do projeto “Reconstrução da História da Conservação da Califórnia”, vários dos objetivos acima mencionados foram atingidos. Na primeira fase, o projeto consistiu em coletar informação sobre a data de aquisição de território para a conservação da natureza na Califórnia. Para tal, baseamo-nos na base de dados fornecida pela GreenInfo Network, uma associação não governamental que se especializa em providenciar dados em formato digital e espacial para a tomada de decisão no estado. Esta base de dados contem os vectores digitais das áreas de conservação da natureza no estado (California Protected Area Database, CPAD[6]).
Em seguida contátamos as agências responsáveis pela gestão de cada área para obter informação sobre a data de estabelecimento da propriedade como área de conservação da natureza. O resultado desta aquisição de dados foi então trabalhado num sistema de informação geográfica (SIG), e colocado na plataforma digital do Spatial History Project da Universidade de Stanford (Figura 1). Nesta plataforma, os dados são apresentados através de uma visualização interativa, onde o utilizador pode circular na história através da barra de datas exibida no topo da visualização. Essa visualização descreve a progressão temporal da aquisição de áreas de conservação da natureza no último século na Califórnia. Em simultâneo, colocámos nessa visualização dados referentes à detecção de espécies de plantas, aves e mamíferos ameaçados, para demonstrar a mudança nos objetivos de conservação de espécies para paisagens e ecossistemas.
Apesar de o contato com os gestores das áreas de conservação ter resultado na obtenção de informação sobre cerca de 92% da área em regime de proteção, não foi possível obter alguns dados, especialmente sobre áreas de conservação pequenas. Para colmatar essa informação utilizamos a plataforma de Citizen Science disponível pela GreenInfo Network (Figura 1C), que nos permitiu pedir a colaboração ao público para obter a informação necessária. A Universidade de Stanford e a GreenInfo Network garantem que a tecnologia é mantida, o acesso é público e os dados são guardados regularmente para garantir a sua perpetuidade. Através da utilização destas plataformas digitais podemos, então, garantir a sustentabilidade e intemporabilidade dos dados históricos.
Figure 1. 
(Figura 1) Visualização dos dados da história da conservação da natureza no estado da Califórnia: (A) em 1880 e (B) em 1950[7]. (C) Plataforma de Citizen Science da GreenInfo Network [8]. Os dados podem ser explorados nas duas plataformas digitais. Na página do projeto, os dados são acompanhados por um artigo [Santos 2014b]. O design foi elaborado por Erik Steiner, cartógrafo e diretor criativo do Center for Spatial and Textual Analysis da Universidade de Stanford.

IV. Humanidades digitais como forma de exploração de dados históricos de forma inovadora

O aumentar da complexidade da informação compilada, a digitalização de dados históricos e a sua representação em bases de dados, podem induzir a coleção de mais informação referente a esses dados e ao processo histórico. Por exemplo, ontogenias digitais são uma ferramenta que permite ligar conceitos através das relações textuais e contextuais entre palavras e sinônimos. As ontogenias digitais permitem recolher digitalmente outros dados históricos digitais relacionados com o tipo de dados originais. Por exemplo, a palavra conservação tem vários significados e, na sua definição através de uma ontogenia, é relacionada com uma rede de termos que tenham sido utilizados para a descrever ou a ela associados. A ontogenia digital permite então identificar todo o conteúdo disponível na internet que faça referência à conservação e a termos relacionados através da sua ontogenia. Este tipo de ligações é ilustrado no projeto Mapping the Republic of Letters [9] onde a correspondência de Voltaire foi sujeita as técnicas de Linked Data para identificar dados existentes na internet e obter mais meta-dados relacionados com os dados originais existentes nas cartas de Voltaire[10]. Estas técnicas digitais permitem, portanto, propagar a ligação entre informação e enriquecer, de forma (semi)automática, a informação já existente. Estes dados, originais ou enriquecidos pelas ligações digitais, podem então ser representados de formas diferentes, como por exemplo utilizando SIGs. Os SIGs, são uma tecnologia que permite uma representação da história de uma forma espacial, para um determinado lugar ou período, e permitem ainda cruzar vários períodos para demonstrar a evolução histórica de uma região, tal como demonstrado na Figura 1.
No contexto do projeto “Reconstrução da História da Conservação da Califórnia”, um outro exemplo é dado na Figura 2 que demonstra a integração de dados históricos num SIG. Infelizmente não foi possível, no âmbito do projeto, trabalhar com tecnologias de Linked Data. Na Figura 2 vários dados históricos são utilizados para representar a história da conservação da natureza na atual cidade de East Palo Alto, na Califórnia. A cidade de East Palo Alto defronta-se atualmente com uma das maiores taxas de criminalidade dos Estados Unidos da América e também com um grande grau de discriminação devido aos diferentes grupos étnicos que aí coabitam. Em contraste, empresas como a Google e o Facebook existem a paredes-meias com este centro urbano cidade. No entanto enquadra também das primeiras e mais importantes áreas protegidas, como por exemplo a Baylands e Don Edwards de salinas tradicionais. Analisando o contexto histórico do desenvolvimento da cidade, permite responder a questões étnicas em simultâneo com a preservação da natureza, pensadas como antagonísticas ou alternativamente como causando sinergias. A visão de que questões de minorias não estão associadas com a preservação da natureza é relacionada com associações entre parques e zonas afluentes, para aproveitamento e recreação em espaço aberto e natureza. Por outro lado, há uma percepção de que parques podem também ser centros de criminalidade por oferecem muitas zonas restritas e por vezes menos frequentados. No entanto a presença de parques pode criar sentidos de comunidade e apreciação da natureza independentemente de questões de étnica e de afluência.
Em termos históricos a cidade de East Palo Alto está localizada no que foi inicialmente o Rancho das Pulgas (Figura 2B). Durante as expedições à Califórnia, efectuadas por exploradores espanhóis a partir de 1769, o terreno e os seus títulos foram dados à concessão a esses mesmos exploradores, para que implementassem um rancho ao estilo espanhol, isto é, que incluísse uma missão religiosa, uma casa senhorial, uma área agrícola e uma área para pastoreio. Estas concessões de território a exploradores, que tiveram início cerca de 1770s, tinham como intenção a colonização do estado e o estabelecimento de missões religiosas. Após este período, decorreu a cessão da Califórnia do México para os Estados Unidos da América, através de uma anexação resultante de uma guerra de conquista territorial. Em 1848 foi assinado o tratado de Guadalupe, o qual previa a concessão destes ranchos, mas que requeria uma verificação. Tal como se vê na Figura 2B, o Rancho das Pulgas foi concessionado em 1795 e a sua concessão verificada pelos Estados Unidos da América em 1857. O Rancho das Pulgas foi um dos primeiros a ser concedido, o que demonstra que a área onde Palo Alto e East Palo Alto se encontram localizadas hoje em dia, tem uma longa história no contexto do Oeste norte Americano. A sul deste rancho, a Canada de Corte Madera foi adquirida em 1833, e outras propriedades foram-se sucedendo (Figura 2B).
A Figura 2C mostra o efeito do processo de colonização e de desenvolvimento humano na paisagem da região. Os dados utilizados na produção desta figura foram originalmente produzidos pelo San Francisco Estuary Institute, numa perspectiva de reconstruir a paisagem da Baia de São Francisco, antes da colonização Europeia. Utilizando dados históricos registados nos diários dos exploradores, mapas da região e modelação matemática, estes cientistas produziram uma reconstrução da vegetação existente nesta área, em 1800’s, aquando da primeira ocupação Europeia. Utilizando tecnologia de sensoriamento remoto e imagens aéreas, estes cientistas produziram o mapa atual, que permite comparar a mudança da paisagem devido ao processo de desenvolvimento urbano e agrícola. Estes dados históricos e atuais, bem como os dados de SIG, estão disponíveis gratuitamente online para todos os utilizadores interessados na sua representação[11].
Figure 2. 
(Figura 2) A história da cidade de East Palo Alto na Califórnia, um testemunho de conflito e conservação. Contribuições de Matt Walker e Alice Avery, alumni da Universidade de Stanford.
A utilização de tecnologia SIG permite, também, representar facetas da história de uma região de forma ainda mais completa. Os mapas da Figura 2D demonstram outro tipo de dados históricos e atuais que foram produzidos, utilizando SIGs. O mapa da esquerda evidencia a digitalização de mapas de circa de 1920’s, produzidos por avaliadores do United States Geological Survey, para determinar quais os recursos naturais no estado da Califórnia [Olmstead 1929]. O mapa do centro tem as mesmas designações de tipos de paisagem e foi produzido com dados de imagens de satélite e visitas de campo para observar que paisagens existem na realidade e validar o processamento das imagens de satélite. O mapa da direita foi produzido com dados de mapas das estradas desde 1930’s (as linhas no mapa), e com um modelo matemático preditivo das áreas urbanas históricas, baseado em imagens de satélite [Santos 2014b]. A combinação destes mapas permite reconstruir a história da região e identificar como um crescimento urbano exacerbado levou à destruição quase completa da sua vegetação natural. Os esforços de conservar a natureza estão mapeados na Figura 2E. A primeira área protegida corresponde a Jasper Ridge Biological Preserve da Universidade de Stanford, que foi uma propriedade dedicada à conservação da natureza desde 1919. Posteriormente foram aquiridas ou designadas várias outras propriedades para a conservação da natureza. Algumas dessas propriedades são muito características desta região, como por exemplo a Baylands e Don Edwards que preservam as salinas tradicionais da Baía de São Francisco.

V. Humanidades digitais como forma de ensino de história

Uma outra funcionalidade deste tipo de projetos é a sua utilização para o ensino da história, da história ambiental em particular e de humanidades digitais em geral. Os dados apresentados na Figura 2 foram utilizados numa disciplina leccionada na Universidade de Stanford, e os métodos de Spatial History são também leccionados nesta mesma universidade, recorrendo a algumas das visualizações, tecnologias e processamento de dados aqui exemplificados. Esta é uma forma de expandir o ensino da história para além dos formatos tradicionais, enquadrando-o na sociedade digital de hoje em dia e do futuro. O investimento numa plataforma digital permite ainda quebrar barreiras, e possibilita que o ensino da história [da conservação da natureza nesta região ou outros tópicos] seja disponibilizado a um público mais geral. Iniciativas semelhantes têm sido implementadas, por exemplo, na Holanda[12], no Brasil[13], no Reino Unido[14], entre outros. Outros exemplos dessas iniciativas são a organização de convenções, como a conferência europeia de ciências sociais históricas (European Social Science History Conference), focada na história espacial e digital (Spatial and digital history [15]), e publicações como as do Spatial History Project da Universidade de Stanford ou de jornais como Digital Humanities Quarterly [16], Digital Scholarship in the Humanities [17], ou Digital Studies [18].
Adicionalmente, os dados coletados no âmbito do projeto foram utilizados para uma exposição no Oakland Museum of California, sobre a expansão da rede rodoviária, do tecido urbano e das áreas de conservação da natureza na Baía de São Francisco (Figura 3). A conservação de território para a preservação da natureza nunca foi um processo fácil na Baía de São Francisco. Desde o início, surgiu como uma resposta e como uma competição entre os promotores de desenvolvimento e os conservacionistas, que procuraram manter as características estéticas e ecológicas da Baía. São Francisco, conhecida como “cidade instantânea” [Barth 1975] devido ao seu rápido crescimento durante a Corrida ao Ouro, continuou a crescer o seu tecido urbano no século XX. Esse crescimento urbano não se restringiu à área relativamente pequena da cidade de São Francisco, mas estendeu-se aos outros condados ao redor da Baía, facilitado pela implementação de grandes rotas de transporte - primeiro através de ferrovias e depois rodovias. A extensão regional desse crescimento levou à criação da Associação de Governos da Área da Baía (Association of Bay Area Governments - ABAG). Hoje, a ABAG define diretrizes que determinam a proporção de território a ser desenvolvido e conservado, mas depende de governos municipais para cumprir voluntariamente essas diretrizes. Por outro lado, o estado da Califórnia e as municipalidades locais cobram taxas de desenvolvimento que são destinadas à compra de terrenos para a conservação da natureza. Isso cria um ciclo de feedback interessante, já que a disponibilidade de fundos para aquisição de propriedades para a conservação da natureza depende do crescimento urbano contínuo. Até hoje, os habitantes da Baía de São Francisco procuram manter os níveis atuais de estética e qualidade de vida, enquanto o rápido crescimento impulsiona a demanda por um maior desenvolvimento. A visualização da Figura 3 explora a relação dinâmica entre o desenvolvimento de áreas urbanas e redes de transporte e a preservação de território para a conservação da natureza. Nesta figura podem observar-se as grandes extensões de território que se tornaram protegidas nas décadas de 1920 e 1930, e como as estradas e a extensão urbana cresceram nos anos 60. Podem também comparar-se o tamanho das parcelas para a conservação da natureza em áreas não urbanas, com os pequenos parques dentro da zona urbana (visualizadas a cinza escuro). Os maiores esforços de conservação foram decididamente mais vincados na década de 1970, traduzidos em termos de número de parcelas conservadas. Mas o tamanho médio da parcela nesta década é muito menor do que nas décadas anteriores, devido a uma gradual escassez de território natural. Novos parques e outras propriedades para a conservação da natureza foram criados cada vez mais na proximidade das áreas de desenvolvimento urbano, ou no seu meio, como uma reação à expansão urbana, na segunda metade do século. Parques criados anteriormente viram-se cada vez mais rodeados pelo tecido urbano. Os dados utilizados para esta visualização incluíram mapas de estradas (Figura 3B), cada um representando uma década de desenvolvimento. Estes mapas foram doados à Universidade de Stanford (Berlo maps), digitalizados e geo-referenciados. As estradas foram digitalizadas manualmente, tal como representado na Figura 3B, e os vectores digitais das estradas em cada década foram co-referenciados e alinhados digitalmente com os dados das áreas de conservação da natureza (Figura 3C). Todo este processo de colagem e processamento de dados requer tempo e dedicação, o que no caso do projeto “Reconstrução da História da Conservação da Califórnia” foi possível através da participação de vários alunos da Universidade, que não só obtiveram créditos académicos, mas também foram treinados em várias tecnologias fundamentais para as humanidades digitais, como por exemplo data science, informação geográfica, história, design, programação e, por fim, foram também incluídos como co-autores numa publicação [Santos 2014b].
Figure 3. 
(Figura 3) Figura representando o processo de mapeamento digital do crescimento do tecido urbano, rede rodoviária e ferroviária, e propriedades para a conservação da natureza na Baia de São Francisco. Contribuição de Alice Avery, alumni da Universidade de Stanford [Santos 2014b]. Esta visualização foi também exibida no Oakland Museum of California.

IV. Humanidades digitais como estimulo à atividade intelectual em história e noutras disciplinas

Um arquivo digital histórico pode ser facilmente acedido por historiadores permitindo uma globalização dos dados históricos, desafiando o processo tradicional desta disciplina para uma transformação num processo colaborativo ao estudo da história. Uma maior exploração dos dados e contexto por diferentes utilizadores permite criar novas perspectivas, novas interpretações e novos desenvolvimentos do conhecimento histórico. Por exemplo, no contexto do projeto “Reconstrução da História da Conservação da Califórnia”, os dados aqui recolhidos foram utilizados por historiadores, ilustrando novas perspectivas da história ambiental do estado. Pela primeira vez foi possível visualizar a timeline das áreas protegidas e como se relacionam com a conservação de espécies, habitats, clima e com a legislação de proteção da natureza e de desenvolvimento urbano [Santos 2014a]. Estes dados permitiram reconstruir o processo histórico nos últimos 160 anos e acompanhá-lo de modelos matemáticos para prever o impacto de novo tecido urbano nas áreas dedicadas à conservação da natureza. A informação gerada permite também levantar novas hipóteses e questionar o status quo da história ambiental, o porquê de aliar conservação da natureza com desenvolvimento urbano, se há outras formas de preservar o ambiente e quais as implicações de um percurso histórico como o registado na conservação da natureza no futuro. Para além destas novas hipóteses relacionadas com o projeto, também são formuladas outras questões associadas a disciplinas distintas, como por exemplo, no âmbito da geografia, aferir o papel de criar barreiras fixas ou flexíveis no processo histórico ambiental. No âmbito das humanidades digitais este projeto também levantou questões sobre o valor de cruzar volumes elevados de informação e sobre a possibilidade de compreender a complexidade da informação, sendo possível que a partir de um certo nível de complexidade deixa de ser informação e passa a ser ruído. Os resultados foram ainda utilizados pela própria ABAG e pelos responsáveis do governo da Califórnia pelo futuro da conservação.

Conclusões

O objetivo deste artigo foi apresentar um argumento ilustrado de como é que as humanidades digitais podem ou não servir vários propósitos, utilizando para tal os resultados do projeto “Reconstrução da História da Conservação da Califórnia”. O argumento é que as humanidades digitais podem servir distintos propósitos variando entre (i) a coleta de novos dados, armazenamento e distribuição de dados, (ii) a exploração de dados de formas inovadoras, (iii) o ensino da história e de humanidades digitais, e (iv) o estimulo à atividade intelectual e ao levantamento de novas hipóteses para enriquecer o nosso conhecimento multidisciplinar. Os objectivos subjacentes ao projeto são realçar a história da conservação da natureza, visualizar o seu progresso e analisar os fatores determinantes para o seu desenrolar durante os últimos 160 anos. Durante este projeto, optou-se pela utilização da plataforma digital para demonstrar a história ambiental no estado da Califórnia nos últimos 160 anos. As lições aprendidas durante o projeto foram várias, e ligadas aos vários tópicos discutidos neste artigo.
Primeiro, foi demonstrado que, apesar de ser possível coletar uma imensidão de dados através de métodos tradicionais de história, a utilização de tecnologias digitais permite que estes dados possam ser aumentados, como por exemplo através de metodologias de Linked Data e através de plataformas colaborativas de Citizen Science. Todas estas iniciativas são muito inovadoras e valiosas no cruzamento de dados, mas é preciso que sejam tomadas precauções para que a informação não seja de tal forma completa e complexa que se torne desfavorável ao avançar do conhecimento. Numa era de big data existem já metodologias para selecionar dados de forma sistemática, permitindo que, na história digital, não se chegue a este extremo de demasiada informação.
Segundo, ainda estamos numa fase muito preliminar na coleção de dados históricos com tecnologias digitais, e ainda não existem protocolos estabelecidos de distribuição de dados, sistemas open source e open access. Por outro lado, as novas regulações de proteção de dados poderão ter um papel de controle de como é que estas tecnologias e bases de dados se irão desenvolver num futuro próximo. É necessário desenvolver cuidadosamente tipos de certificações de acesso de dados, ilustrados por outros processos semelhantes noutras disciplinas.
Terceiro, uma vez disponíveis, estes dados têm um grande potencial de descoberta histórica e multidisciplinar. Um potencial que vai depender das falhas existentes no conhecimento, mas também das novas oportunidades e avanços que serão apenas possíveis através de mais dados e de formas criativas de os relacionar. Existem novas formas de pensar e de cruzar informação e o futuro revela-se promissor. Um investimento relativamente modesto em tecnologias digitais tem o potencial de criar conhecimento a uma velocidade sem precedente.
Quarto, tal como exemplificado aqui, estas tecnologias e experiências digitais são fundamentais no ensino da história, e de muitas outras disciplinas. Vivemos numa era tecnológica, numa sociedade digital, e assim se prevê que seja o futuro, pelo que aproveitar os benefícios de um conhecimento e de um ensino digital é fundamental. No entanto, estes métodos não devem ser vistos como uma panaceia, uma vez que há limitações ao seu uso, e devem ser complementares aos processos tradicionais de fazer história e investigação em humanidades ou outras disciplinas.
Finalmente, como ilustrado ao longo deste artigo, muitas novas questões foram surgindo, uma vez que os dados foram cruzados e disponibilizados através de visualizações em plataformas digitais. Questões associadas à ocupação de espaço, à percepção das ligações entre a história ambiental e a geografia humana e cultural, ao desenvolvimento urbano e de como interconectar conhecimento entre humanidades digitais com ecologia, alterações climáticas, e fatores sociais e econômicos, são alguns exemplos. Novas direções são necessárias para preservar dados, garantir a sua distribuição, a sua análise critica e interpretação, de forma a maximizar a produção de conhecimento. O futuro é vasto e as humanidades digitais têm certamente um lugar nesse futuro.

Agradecimentos

Este projeto não seria possível sem o financiamento do Center for Spatial and Textual Analyis e do Bill Lane Center for the American West da Universidade de Stanford. Adicionalmente são devidos agradecimentos a Jon Christensen, Zephyr Frank, Erik Steiner, Jake Coolidge, Geoff MacGhee e Jim Thorne, e a todos os membros juniores do projeto: Alice Avery, Alexandra Peers, Taz George, Claudia Preciado, Ma’ayan Dembo, Emily Francis, e Matthew Walter. Um agradecimento também a Luis Miguel Rosalino pela revisão do português.

Abstract

This paper addresses the experience of the author when developing a digital platform on the history of nature conservation in California from 1848. This digital platform is designed to showcase, allow exploration and knowledge transfer as well as ask new questions and place new hypotheses on the history of conservation, for a state pioneer in these themes. The natural resource values of California along with the entrepreneurship allowed for an early start of nature conservation in the state. These ideas of conservation soon were brought into legislation, governmental action and processes, and population awareness and behavior. However, the development of the conservation history was not without barriers, as nature conservation has been challenged by development processes, namely exponential population growth and urban fabric, and the growing need for land use management that met the needs from different sectors. The Project herein described is based on the need to showcase the history of conservation in California, visualize its development over time, and analyze socio-economic and environmental drivers of its development over the last 160 years. This article is therefore of importance as it contributes to broadening and deepening the discussion along the challenges brought about by urban and population development. The digital platform described herein is therefore innovative and fundamental to further stimulate new questions at the interface of history and many other disciplines.

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Works Cited

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