Abstract
Após as edições em espanhol e em francês, vem agora à luz a edição especial
em português da Digital Humanities Quarterly. A premissa é a de que as humanidades digitais só podem
realizar plenamente a identidade que gostam de assumir, qual seja, a da
valorização do compartilhamento do conhecimento e da liberdade para
produzi-lo e fazê-lo circular, se efetivamente questionarem as atuais
geopolíticas do mundo acadêmico e científico que disciplinam as práticas das
comunidades envolvidas.
Após as edições em espanhol e em francês, vem agora à luz a edição especial
em português da Digital Humanities Quarterly. A iniciativa compõe um esforço
diligente da Alliance of Digital Humanities Organisations (ADHO), entidade
que publica a DHQ, para conferir maior diversidade e polifonia aos debates
que envolvem as humanidades digitais, reconhecidamente centrados no mundo
anglo-saxão (sobre isso, ver
Gil, 2016, e
O’Donnell et. al., 2016). No âmbito da
mesma organização, as ações desenvolvidas pelo Global Outlook::Digital
Humanities (GO::DH) têm como objetivo ostensivo “(…) ajudar a quebrar as barreiras que impedem a
comunicação e a colaboração entre pesquisadores e estudantes das
áreas de Artes Digitais, Humanidades e Patrimônio Cultural, em
economias de alta, média e baixa renda.” Daí que se considere que “as
perspectivas do Sul Global são vitais para moldar o futuro das
humanidades digitais.”
[1] A premissa é a de que as humanidades digitais só podem
realizar plenamente a identidade que gostam de assumir, qual seja, a da
valorização do compartilhamento do conhecimento e da liberdade para
produzi-lo e fazê-lo circular, se efetivamente questionarem as atuais
geopolíticas do mundo acadêmico e científico que disciplinam as práticas das
comunidades envolvidas.
No entanto, tudo o que envolve a quebra de hierarquias culturais é mais
complexo do que faz supor o reconhecimento de boas vontades e belas ideias.
As infraestruturas tecnológicas, por exemplo, não são fácil e prontamente
transformadas para se conformarem melhor a concepções e mentalidades mais
igualitárias e democráticas. As tensões resultantes dessas
incompatibilidades podem ser produtivas, se colaboram para a transformação
daquelas infraestruturas em direções emancipatórias, ou negativas, se
constrangem a viabilização das novidades. O recente adiamento pela NASA da
primeira caminhada espacial composta apenas de mulheres da história, por
conta da falta de trajes femininos de astronautas, é um exemplo anedótico e
quase metafórico desse fenômeno.
[2] A explicação do ocorrido
denuncia a defasagem entre a intenção igualitária e a infraestrutura
tecnológica: “O design de trajes espaciais tem sido
tendencioso em direção ao físico dos homens, devido a restrições
tecnológicas e ao fato de a NASA ter preferido astronautas masculinos
durante a maior parte de sua existência”.
[3] Na preparação da presente
edição especial, também surgiram contratempos que ilustram a mesma questão
de fundo. Em dezembro de 2018, o Open Journal Systems, iniciativa em si
mesma meritória, pois viabiliza a edição e a circulação de revistas de
acesso aberto, atualizou a sua plataforma para uma versão pretensamente mais
moderna e funcional. No entanto, a partir da migração, a plataforma passou a
não mais reconhecer os “caracteres especiais” da língua portuguesa,
tais como aqueles que aparecem em “globalização” e “contradições”.
Assim, os artigos, os pareceres e as correspondências entre os envolvidos
tornaram-se quase ilegíveis. Muitos foram os afetados por esse problema, e
um tópico sobre o tema foi aberto no fórum de discussões da OJS/PKP (
https://forum.pkp.sfu.ca/search?q=special%20characters, acessado
em 8 de dezembro de 2019). De todo modo, o problema de codificação dos
textos não teve solução até o momento, persistindo a dificuldade na leitura
de idiomas que fazem uso de “caracteres especiais”, como o português.
No ambiente das humanidades digitais, o tema não é novo já vem sendo
abordado há algum tempo. Como afirmam Fiormonte et al (2015), “(...) decisões aparentemente ‘neutras’ e
‘técnicas’, como podem ser observadas em Unicode, TEI ou outras
organizações, tendem a simplificar demais e a padronizar a complexa
diversidade de idiomas e artefatos culturais”.
[4]
Por conta disso, e após muitas tentativas frustradas, decidiu-se prosseguir
com o fluxo do trabalho da edição em um sistema paralelo, com base na troca
de e-mails e no armazenamento dos arquivos em repositórios digitais,
prescindindo da plataforma do OJS. Ao fim e ao cabo, a edição em português
chega ao seu destino programado, ainda que com atraso, mas com todos os
acentos e cedilhas a que tem direito.
O conjunto de textos da edição pode ser separado em dois grupos: três artigos
têm o seu centro de gravidade na discussão de projetos de pesquisa que se
identificam com as humanidades digitais, a partir dos quais desenvolvem
algumas reflexões mais gerais; e três outros analisam o que cerca e
condiciona a pesquisa e o trabalho do humanista digital, abordando tanto
questões teórico-metodológicas, como dominâncias temáticas e tendências
institucionais. No primeiro grupo, chama a atenção que as três pesquisas
apresentadas têm nas geotecnologias o seu principal suporte instrumental,
nesse aspecto confirmando a percepção geral da valorização crescente da
dimensão espacial em pesquisas nas humanidades [
Bodenhamer et al. 2010]. Dois desses projetos se ocupam da história: Patricia Ferreira Lopes faz
uso de sistemas de informações geográficas (SIG) para estudar as redes de
caminhos da Península Ibérica do século XVI, e Maria João Ferreira dos
Santos reconstrói, por meio da mesma tecnologia, a história da conservação
da natureza na Califórnia, cobrindo o período que vai de 1850 a 2010. Mesmo
que oriundas das áreas da arquitetura e da biologia, respectivamente,
Patrícia Lopes e Maria dos Santos acabam por corroborar a tese de que os
SIGs têm a predileção entre os pesquisadores do passado que fazem uso de
tecnologias [
Gregory and Ell 2007]. Sarita Albagli, Hesley Py e Allan
Yu Iwama compuseram o terceiro artigo dedicado a projeto com geotecnologias,
nesse caso abordando uma experiência de intervenção social sobre o
território. O projeto em tela discute o desenvolvimento de um “protótipo de plataforma de dados abertos geoespaciais
[Plataforma LindaGeo], como parte de uma pesquisa-ação de ciência aberta
realizada no município de Ubatuba, no litoral norte do Estado de São
Paulo, Brasil”. Aqui também são reafirmadas algumas das
principais identidades que costumam ser associadas às humanidades digitais,
voltadas à ética da produção colaborativa e à livre circulação do
conhecimento [
Greenspan 2016]
[
Spiro 2012].
Já dentro do segundo bloco de artigos, Luís Corujo, Jorge Revez e Carlos
Guardado da Silva se ocupam de um tema que tem sua importância ainda pouco
reconhecida: a curadoria digital e seus custos. Os autores defendem não
apenas uma maior diligência no planejamento da gestão de dados, mas também a
disseminação de práticas mais transparentes e reprodutíveis, de forma a
aumentar o acesso aos resultados da produção científica. Por sua vez,
Cláudio José Silva Ribeiro, Suemi Higuchi e Luis Ferla buscam compor um
panorama aproximado das humanidades digitais no Brasil, privilegiando, para
isso, a experiência do I Congresso Internacional em Humanidades Digitais no
Rio de Janeiro, em abril de 2018. Encerrando o dossiê, Maria Clara Paixão de
Sousa traz uma reflexão acerca da ressignificação radical da escrita e da
leitura no ambiente tecnologizado do tempo atual, o que, em sua perspectiva,
altera “profundamente o trabalho tradicional nas
humanidades” e instaura “uma nova conformação
discursiva para o campo”.
Por fim, os editores gostariam de agradecer a todos que tornaram possível
esse número especial da DHQ, a começar pelos próprios autores e autoras e
pareceristas convidados, dos quais a capacidade intelectual, o conhecimento
científico e a obstinada paciência foram imprescindíveis para haver algo
aqui a ser introduzido. A Alex Gil, pelo convite inicial e pelo suporte
desde então. E a Rhian Lewis e Kate Bundy, assistentes consecutivas de todo
o processo, produtoras incansáveis de facilidades e destruidoras implacáveis
de dificuldades, elas sim as verdadeiras “caracteres especiais” dessa
edição.
Abstract
Following the Spanish and French editions, we present the special edition of
Digital Humanities Quarterly in Portuguese. The premise is that the digital humanities can only
fully assume its desired identity, namely that of the valuation of knowledge
sharing and the freedom to produce and circulate that knowledge, if they
effectively question the current geopolitics of the academic and scientific
world which dictate the practices of the communities they encompass.
Following the Spanish and French editions, we present the special edition of
Digital Humanities Quarterly in Portuguese. This initiative forms part of a
broader effort by the Alliance of Digital Humanities Organizations (ADHO),
the entity which publishes DHQ, to bring greater diversity and
multilingualism to the debates surrounding Digital Humanities, typically
recognized to be centered in the Anglo-Saxon world (see
Gil, 2016, and
O’Donnell et. al., 2016). Within this organization, actions taken
by Global Outlook::Digital Humanities (GO::DH) are ostensibly aimed at
“(…) helping to break down barriers to communication
and collaboration between researchers and students in the areas of
Digital Arts, Humanities and Cultural Heritage in high, middle and low
income economies.” Thus the “perspectives of
the Global South are vital to shaping the future of digital
humanities.” The premise is that the digital humanities can only
fully assume its desired identity, namely that of the valuation of knowledge
sharing and the freedom to produce and circulate that knowledge, if they
effectively question the current geopolitics of the academic and scientific
world which dictate the practices of the communities they encompass.
However, the breakdown of cultural hierarchies is more complex than simply
the supposed recognition of good intentions or beautiful ideas.
Technological infrastructures, for example, are not easily and readily
transformed to better conform to notions and mindsets that are more
egalitarian and democratic. The tensions resulting from these
incompatibilities can be productive if they contribute to the transformation
of said infrastructures in emancipatory directions or can be negative if
they limit the viability of progress. NASA’s recent postponement of the
first all-women spacewalk in history due to the lack of female astronautic
attire is both an anecdotal and metaphorical example of this
phenomenon.
[1] The explanation of the
incident exposes the gap between egalitarian intention and technological
infrastructure: “Spacesuit design has long been biased
toward men’s physiques, both due to technological constraints and the
fact that NASA preferred male astronauts throughout most of its
lifetime.” In the preparation of this special edition, setbacks
have emerged that have illustrated the same substantive issue. In December
of 2018, the Open Journal System (OJS), a valuable initiative in itself
given that it makes possible editing and circulating open access journals,
upgraded its platform to a supposedly more modern and functional version.
However, since the migration the platform no longer recognizes the
“special characters” of the Portuguese language, such as those
present in “globalização” (globalization) and “contradições”
(contradictions). Thus, the articles, opinions and correspondences of our
team and authors became functionally illegible. Many were affected by this
issue, and a topic about this was opened in the discussion forum of OJS/PKP
(
https://forum.pkp.sfu.ca/search?q=special%20characters, accessed
on the 8th of December 2019). However, the problem of coding texts has not
been solved thus far, and the difficulty of reading languages that make use
of “special characters” such as Portuguese persists. In the digital
humanities environment, this topic is not new and has been tackled for quite
some time. As Fiormonte et al (2015) affirm, “(…)
apparently ‘neutral’, ‘technical’ decisions, as can be
observed in Unicode, TEI or other organisations, tend to oversimplify
and standardise the complex diversity of languages and cultural
artefacts.”
Taking this into consideration and after many unsuccessful attempts, we
decided to continue with the editing workflow in a parallel system,
resorting to email exchanges and storing files in digital repositories
external to the OJS platform. In the end, the Portuguese edition reached its
programmed destination, albeit late, but with all of the accents and
cedillas intact.
The texts of this special edition can be separated into two groups: three
articles rooted in the discussion of research projects identified with
digital humanities that then develop more general reflections; and three
others that analyze what surrounds and conditions the research and work of
the digital humanist, addressing both theoretical and methodological issues,
as well as thematic strongpoints and institutional trends. In the first
group, it is noteworthy that the three studies use geotechnology as their
primary instrumental support, thus affirming the general perception of an
increasing appreciation of the spatial dimension in humanities research [
Bodenhamer et al. 2010]. Two of these projects deal with history:
Patricia Ferreira Lopes utilizes Geographic Information System (GIS) to
study road networks in the 16th century Iberian Peninsula, and Maria João
Ferreira dos Santos employs this same technology to reconstruct the history
of natural conservation efforts in California, covering the period between
1850 and 2010. Although they stem from the fields of architecture and
biology respectively, Patrícia Lopes and Maria dos Santos end up
corroborating the impression that past researchers preferred GIS
technologies [
Gregory and Ell 2007]. Sarita Albagli, Hesley Py and
Allan Yu Iwama compose the third team of researchers whose article is
dedicated to geotechnology, in this case addressing an experience of social
intervention on geographical territory. The project in question discusses
the development of a “platform prototype for open access
geospatial data [LindaGeo Platform] as part of an open science
action-based research project conducted by the Municipality of Ubatuba
on the Northern Coast of the State of São Paulo, Brazil.” Here we
also reaffirm some of the main identities that are typically associated with
the digital humanities, focused on the ethics of collaborative production
and the free circulation of knowledge [
Greenspan 2016]
[
Spiro 2012].
In the second block of articles, Luís Corujo, Jorge Revez and Carlos Guardado
da Silva explore a topic whose importance has yet to be sufficiently
recognized: digital curation and its costs. The authors advocate not only
for greater diligence in data management planning, but also the
dissemination of more transparent and reproducible practices in order to
increase access to the results of scientific production. In the second
article, Claudio José Silva Ribeiro, Suemi Higuchi and Luis Ferla attempt to
give a panoramic examination of digital humanities in Brazil, paying
particular homage to the experience of the First International Congress on
Digital Humanities in Rio de Janeiro in April of 2018. To close the special
edition, Maria Paixão de Sousa provides a reflection on the radical
resignification of writing and reading in the technologized environment of
the present day, which, in her perspective, “profoundly
alters the traditional work of the humanities” and establishes
“a new discursive conformation for the
field.”
In closing, the editors would like to thank everyone who has made this
special edition of DHQ possible, starting with the authors themselves as
well as the invited reviewers, whose intellectual capacity, scientific
knowledge and stubborn patience were indispensable to this issue. To Alex
Gil, for the initial invitation and his support since then. And to Rhian
Lewis and Kate Bundy, consecutive assistants throughout the process, both of
whom were tireless in their efforts and who met hardship with great
fortitude and ease. They are the true “special characters” of this
edition.