1 Preâmbulo (ou: “A Prosa do mundo”)[1]
Começo essa reflexão trazendo uma anedota bastante pessoal – que, espero, em
tempo se justificará como ilustração prévia para o debate que proponho. Vamos à
história: a primeira vez que li
As palavras e as
coisas
[
Foucault 2000] foi há quase trinta anos, naqueles tempos
longínquos quando, estudantes, entrávamos nas bibliotecas (aqueles edifícios
feitos de concreto), íamos até as estantes pegar os livros (aqueles objetos
feitos de papel), sentávamos à mesa e... líamos. E, se quiséssemos consultar um
ponto obscuro na leitura, tínhamos que andar até uma outra estante, pegar um
outro objeto feito de papel, e tentar achar entre suas páginas (literalmente
páginas, viradas uma a uma) a informação de que precisávamos. Nessas condições
antediluvianas, e nos meus vinte anos, a leitura das
Palavras foi um desafio imenso – não apenas pela imaturidade
intelectual que, inevitavelmente, me permitia compreender muito pouco ou quase
nada do que estava ali, mas também (hoje concluo) porque eu não conseguia
enxergar nada do que era descrito na complexa rede de
referências discursivas e, em alguns pontos, iconográficas tramada por Foucault
na obra.
Mais recentemente, em uma nova tentativa com As
Palavras, descobri neste mesmo livro um universo repleto de imagens
coloridas e fascinantes. Dessa vez, não lia na mesa escura de uma biblioteca de
concreto; lia podendo consultar, numa tela de vidro brilhante, todas as obras
citadas no livro – todas, simultaneamente, abertas aos meus olhos, acessíveis
aos meus dedos. Um efeito particularmente forte desse alcance às referências se
revelou na leitura do capítulo “A Prosa do Mundo”,
aquele em que Foucault discute o poder das analogias visuais nos tratados
renascentistas. Essa discussão, repleta de força imagética, tornou-se
inacreditavelmente menos hermética e mais compreensível com o acesso às gravuras
que ele comenta.
Animei-me então a elaborar para os meus alunos (para quem, afinal, estava
preparando a leitura do texto) uma pequena
biblioteca virtual com
ligações para versões digitais das obras citadas por Foucault
[2];
e, depois, fui ler o capítulo com eles, absolutamente encantada com os meus
achados. Eles, por sua vez, não pareceram ver nada demais naquilo. Ingenuidade
minha – pois, ao contrário de nós que nos cansávamos nas andanças frustrantes
pelos corredores das bibliotecas universitárias nos tempos dantanho, os jovens
de vinte anos hoje consideram normal; esperado; “evidente” que “tudo pode
ser encontrado”; que “tudo pode ser visto”; que tudo está
“aqui”, na ponta dos nossos dedos.
Naquele dia, talvez um pouco espantada pela naturalidade com a qual meu pequeno
gabinete virtual de maravilhas foi recebido, pensei em como, por contraste,
devem ter sido raros os leitores que, desde a publicação de As palavras e a coisas em 1966, puderam acompanhar a leitura do
texto com a consulta fácil e imediata às vinte e três fontes textuais escritas
entre 1555 e 1674, citadas só no capítulo da “Prosa”,
e às ilustrações que elas contêm. Considerando a raridade dos livros referidos
no capítulo, só podemos imaginar esse leitor singular no gabinete de uma
biblioteca particular excepcional, ou na sala de leitura de uma grande
biblioteca europeia – por exemplo, na Biblioteca Nacional da França, que guarda
a maior parte das obras citadas ali; mas mesmo esse leitor privilegiado ainda
precisaria nalgum momento se deslocar para a Itália ou para a Alemanha se
quisesse de fato consultar todas as referências. Hoje, entretanto, a Biblioteca
Nacional da França, a Biblioteca da Universidade de Bolonha, a Biblioteca da
Universidade de Munique, tornaram-se próximas, separadas apenas pelo movimento
de um dedo. E um jovem de vinte anos, em São Paulo, ao ler a “Prosa” pela primeira vez, pode, com toques rápidos numa
pequena tela iluminada, ver todos os animais, monstros e rostos bestiais
comentados minuciosamente por Foucault.
Entretanto – quais os efeitos dessa leveza no levantar o olho do livro? Essa
profusão de informações imagéticas contribui para um aguçamento do entendimento
da obra, ou de fato impede o olhar de concentrar-se nas palavras do autor? Pois
– o olho muitas vezes não perde o caminho de volta, quando o dedo toca a tela
iluminada? Horas depois, não vamos perceber que já não estamos mais lendo As Palavras, mas sim nos maravilhando com as 11.623
imagens que chegaram pelo “Google” quando buscamos: “Aldrovandi,
Dragons”?
Mais que isso. Quando preparamos para nossos alunos pequenas coleções de
maravilhas, e de fato quando damos ao mundo nossos novos produtos de pesquisa –
nossas coleções coloridas de iconografias em torno de obras clássicas, com
finalidade pedagógica; nossas constelações de textos antigos, dispersos por
séculos no Velho Mundo, mas agora unidos em uma rede que nós mesmas
criamos digitando códigos numa tela, no Novo; quando fabricamos textos que se
movem, edições que chamam o dedo do leitor – o que é que estamos fazendo? Não
estamos (nós mesmos, os humanistas, os que pensamos ser os
guardiões das formas que a nossa cultura inventou para ler-se) também
contribuindo para essa dispersão dos olhares? Pois reordenar materialmente o
texto, transformar as redes de suas referências, torná-lo poroso e aberto à
manipulação instantânea – não é tecer um novo texto?
Borges não acrescenta nenhuma figura ao atlas do impossível;
não faz brilhar em parte alguma o clarão do encontro poético; esquiva apenas
a mais discreta, mas a mais insistente das necessidades; subtrai o chão, o
solo mudo onde os seres podem justapor-se. Desaparecimento mascarado, ou,
antes, irrisoriamente indicado pela série abecedária de nosso alfabeto, que
se supõe servir de fio condutor (o único visível) às enumerações de uma
enciclopédia chinesa... Numa palavra, o que se retira é a célebre "tábua de
trabalho"; e, restituindo a Roussel uma escassa parte do que lhe é sempre
devido, emprego esta palavra "tábua" em dois sentidos superpostos: mesa
niquelada, encerada, envolta em brancura, faiscante sob o sol de vidro que
devora as sombras — lá onde, por um instante, para sempre talvez, o
guarda-chuva encontra a máquina de costura; e quadro que permite ao
pensamento operar com os seres uma ordenação, uma repartição em classes, um
agrupamento nominal pelo que são designadas suas similitudes e suas
diferenças — lá onde, desde o fundo dos tempos, a linguagem se entrecruza
com o espaço [Foucault 2000, xi].
Naquele lugar onde “"desde o fundo dos tempos, a linguagem se
entrecruza com o espaço” – que aspecto tem, hoje, nossa “"tábua de trabalho"”? Por sobre que mesa ordenamos e
damos sentido aos nossos escritos; que superfície “niquelada, encerada, envolta em brancura” forma a base sobre a qual
podemos espalhar nossas leituras? Que quadro nos permite hoje operar uma
ordenação dos seres e das “coisas”? Em que espaço lemos “a prosa do
mundo”, hoje?
Aqui interrompo minha anedota, pois não tenho respostas para essas perguntas. Mas
me parece certo que vemos se instaurar, no estudo e no ensino das Humanidades,
uma nova forma de ler.
2 As humanidades e o ambiente digital de difusão do texto
Em 2001, John Unsworth apontava para a profundidade das mudanças epistemológicas
em jogo nas Humanidades frente ao contato com as tecnologias computacionais
destacando, entre outros fatores, seus impactos sobre a formação de novos
humanistas. Inscritas na lógica digital, as novas gerações encontrariam formas
inteiramente novas de relacionarem-se com a documentação deixada pelas gerações
passadas, fazendo transformarem-se “as Humanidades”:
The assertion of this paper is that the methodology known as
knowledge representation has profound implications for humanities computing,
and through humanities computing, has the potential to change the way
humanities scholarship is done, to change the nature of graduate education
in the humanities, and to change the relationship between the humanities and
other professions, let alone other disciplines. I believe that knowledge
representation has already produced important new research, and will, in the
future, bring us new insights into what we know about the human record, and
how we know it[3]
[Unsworth 2001].
Em 2008, Gregory Crane, David Bamman e Alison Babeu sugeriam que as novas
ferramentas digitais à disposição dos pesquisadores nas Humanidades fariam
vislumbrar a criação de “"um espaço dinâmico para a vida
intelectual” que equivaleria a um passo revolucionário na história da
leitura:
The tools at our disposal today, primitive as they may appear
in the future, are already adequate to create a dynamic space for
intellectual life as different from what precedes it as oral culture differs
from a world of writing[4]
[Crane et al. 2008].
Como muitos autores que enxergaram no impacto das tecnologias computacionais um
divisor de águas na história das Humanidades, Crane et al (2008) e Unsworth
(2001) falam a partir de um campo específico das Humanidades que, me parece, foi
particularmente sensível à interferência das técnicas eletrônicas: o trabalho
com o texto, na chave mais filológica ou na chave mais linguística. Baumann
& Crane (2010), por exemplo, fazem explicitamente essa ligação direta entre
o deparar-se com um “novo espaço intelectual” e o
trabalho com corpora de línguas:
Treebanks are collections of text with extensive
morphological, syntactic and similar categories of annotation and are
familiar instruments for corpus and computational linguistic research. In
building Treebanks for historical languages such as Greek and Latin, we
found a new intellectual space that combined elements from computational and
corpus linguistics and from the ancient discipline of
philology[5]
[Bamman and Crane 2010].
Não é surpreendente encontrarmos as principais reflexões sobre a profundidade do
impacto do digital nas Humanidades nas áreas que trabalham de modo fundamental
com
o texto – pois foi o texto, em primeiro lugar, o objeto de
atenção humanística que se transfigurou da forma mais absoluta com o advento da
transmissão digital da informação. É talvez por se verem cotidianamente diante
desse novo objeto, materialmente distinto do objeto-texto anterior (conforme
volto a comentar mais à frente), que os filólogos e linguistas envolvidos na
construção de coleções estruturadas de textos em meio eletrônico têm se mostrado
fascinados com as potencialidades inovadoras desse objeto. Não haverá testemunho
mais eloquente desse fascínio que as palavras do jesuíta Roberto Busa sobre as
primeiras versões de seu
Corpus Thomisticum já nos
anos 1940: “Digitus Dei est hic!”, “o dedo de Deus está aqui!”
[
Busa 2004]. Fora do ambiente de trabalho com o texto, entretanto,
o entusiasmo de linguistas e filólogos talvez pareça um tanto exagerado.
Acredito que para compreender nossa perspectiva de que a difusão digital
inscreve novas Humanidades seja interessante compreender por que o texto digital
nos parece conformar um objeto tão radicalmente novo.
2.1 Perspectiva material do texto digital
Como venho propondo em alguns trabalhos recentes, de uma perspectiva
material o
texto digital é uma etapa
objetivamente nova na história do texto, diferindo fundamentalmente das
outras formas textuais por envolver uma combinação de elementos lógicos
naturais e artificiais em sua codificação e, no limite, por sua propriedade
de
representar artificialmente a linguagem [
Paixão de Sousa 2013]. Por conta dessa participação da lógica
artificial em sua composição, o
texto digital é um texto
descorporificado, cuja materialidade não se consubstancia
empiricamente em um objeto palpável, mas sim se inscreve na representação do
código que forma a possibilidade do texto.
Essa é uma diferença material fundante, não uma nova forma para um mesmo
objeto. Vemos isso já no plano mais básico da representação linguística
artificial contida no texto digital, a codificação de
caracteres – aquilo que de fato, de uma perspectiva material e
computacional, faz diferir um arquivo do tipo texto de outros
tipos de arquivos. A codificação de caracteres funciona como uma matriz
lógica de remissões entre dígitos e um inventário de símbolos convencionados
para certos valores linguísticos (“a, b, c”...), e as programações
computacionais operam, nos processadores de texto, manipulando essas
remissões lógicas de modo a compor uma representação que é interpretada,
humanamente, como um texto:
A mágica aqui – o “dedo de Deus” no dígito – está nas possibilidades de
manipulação que a codificação digital do texto abre para o trabalho
filológico e linguístico; e o instrumento no qual essas possibilidades se
evidenciam mais claramente é, talvez, o corpus eletrônico anotado. De
partida, a propriedade incorpórea do texto digital acaba
colocando em termos muito interessantes o problema da definição do corpus
eletrônico, ou seja, dessa coleção de documentos cuja coesão material nos
parecia tão forte que a denominamos corpo. Em Paixão de Sousa
(2014) sugeri o conceito de corpus eletrônico como coleção de
textos digitais hiper-codificados que formam uma “representação artificial da análise linguística”. A partir de
Unsworth (2006), sugeri que o trabalho de anotação depositado sobre os
textos na formação de um corpus eletrônico é uma das instâncias da chamada
representação do conhecimento, Knowledge
Representation, de modo que anotar um texto eletrônico para fins
de análise linguística é tornar explícitas nossa interpretação e nossa
análise. Ressalto entretanto um passo importante que poderia ficar obscuro
ao se conceituar a anotação de textos como uma operação da representação do
conhecimento: não estou afirmando que anotar um texto é explicitar sua
estrutura. Do ponto de vista linguístico e do ponto de vista
material, um texto não tem uma estrutura a ser explicitada;
nós, como intérpretes, como analistas, é que atribuímos uma estrutura ao
texto, e é isso que anotamos. Assim, anotar textos é
efetivamente aplicar camadas de representação interpretativa
sobre eles.
É em cima da nossa anotação – ou seja, em cima dessa nossa
interpretação explicitada – que um texto poderá vir a ser
processado automaticamente em um corpus eletrônico. Note-se o
detalhe central: o processamento automático não se dá sobre um objeto
natural, e sim sobre uma interpretação do texto, que inscrevemos
computacionalmente na codificação e levamos ao processamento de uma
máquina.
Significa dizer, fundamentalmente, que preparar um texto para ser processado
automaticamente por uma máquina é construir a possibilidade do processamento
computacional de sua interpretação (linguística, estrutural, estética).
Nesse ponto já podemos compreender um pouco do fascínio de um linguista
diante dessa metodologia: como sugeri em Paixão de Sousa (2014), a anotação
sintática, por exemplo, nos permite analisar nossas próprias
análises, por meio da construção de sua explicitação
matemática. Nisso opera um passo pouco discutido, mas
fundamental: pois deparamo-nos, nesse processo, com a restrição lógica da
máquina – a máquina, esse construto humano que não compreende o ambíguo, que
não compreende o fluido, que precisa de categorias muito claras e
recursivamente aplicáveis. Ou, nas palavras de Unsworth (2006), deparamo-nos
com a “consistência tola” exigida pelo computador
(“the ‘foolish consistency’ that the computer
requires”). No que toca especificamente o trabalho do linguista,
essa exigência de uma consistência absoluta torna o trabalho de anotação
particularmente interessante – já que, lembro, a linguística é uma área das
humanidades na qual a intuição do analista é uma das mais
legítimas e centrais ferramentas de análise; e traduzir uma análise
intuitiva em uma sequência a de instruções de processamento inequívocas e
inambíguas pode ser uma tarefa extremamente desafiante. O efeito da “consistência tola” afeta a análise linguística pelo
seu avesso: ensinar uma máquina a processar computacionalmente
padrões linguísticos pode ser interessante justamente pelo fato de a análise
linguística intuitiva nos ser tão acessível, e porque sua facilidade esconde
uma série de passos normalmente implícitos. Ou seja, esconde interpretações
que fazemos só porque somos humanos e falantes de uma língua natural (não
por causa das nossas sofisticadas teorias; de fato, muitas vezes até apesar
delas). Essa é talvez uma especificidade que diferencia o trabalho
computacional em linguística do trabalho computacional em outras áreas das
Humanidades: o que estamos analisando computacionalmente, na linguística, é
algo que (a rigor) já sabemos. Mas o computador, com sua
exigência de uma “consistência tola”, nos impede
essa intuição, e nos faz, pelo avesso, ver onde ela atua. Assim, na batalha
cotidiana frente à burrice fundamental do autômato, terminamos questionando
radicalmente nossas categorias naturais, sempre tão ricas em compreender o
ambíguo, o fluido, o que não é claro, o que não se repete jamais.
E com isso chegamos ao coração do problema – pois essa incursão pelo mundo da
lógica fria de uma máquina que calcula sequências de números termina por
transformar, indelevelmente, nosso olhar sobre o texto. Os corpora
eletrônicos anotados ressignificam profundamente o trabalho de
análise linguística, ao obrigar o linguista a uma nova hermenêutica, mediada
por procedimentos artificiais de processamento simbólico. Assim é que a
construção de bases de dados codificadas quanto à estrutura linguística cria
não só uma nova ferramenta, mas sim um novo objeto de análise para a área, e
funda, consequentemente, um novo olhar.
Saindo da linguística, mas ainda permanecendo no território dos estudos
textuais, esse reajuste hermenêutico no uso das tecnologias computacionais
está também presente em outras áreas de estudo. No campo dos estudos
literários, a possibilidade de se reconhecerem padrões que não são possíveis
a olho nu pelo intermédio do processamento automático é
salientada, por exemplo, por Berry (2011), lembrando a experiência de Tanya
Clement com a obra de Gertrude Stein, em Clement, Steger, Unsworth &
Uszkalo (2008). O autor relaciona esse aspecto ao conceito de leitura
distante versus leitura próxima (distant
reading e close reading). O trabalho computacional
possibilita a visão da repetição de padrões, coisa que não vemos a olho nu
na língua e no texto – porque, na língua e no texto, fora do espaço
artificial que criamos como um corpus (corpo!), o universo é
amplo, fluido, e ambíguo demais.
Dessa forma, o trabalho computacional, nas disciplinas centradas no texto,
cria uma nova leitura. As grandes bases de dados não nos ajudam
apenas a arquivar grandes volumes de informação e processá-las mais
rapidamente, mas sim, fundamentalmente, a depreender padrões, e no limite,
interpretá-los. Como salientei de início, essa questão dos
efeitos do processamento automático do texto parece atingir com mais
centralidade as disciplinas humanísticas mais tradicionalmente dedicadas ao
texto como objeto de estudo, como a linguística, a filologia, e (talvez de
uma forma diferente, mas ainda assim intensa) os estudos literários; não
poderei aqui visitar com propriedade seus efeitos sobre as disciplinas
irmãs, como a história e as áreas voltadas para os estudos sociais e
culturais. Entretanto, talvez se mostre igualmente relevante nesses campos
próximos a segunda questão que gostaria de debater aqui: a proliferação e
dispersão das fontes.
2.2 O texto digital e sua difusão
A nova forma de interpretação e leitura aberta pelo meio digital constrói-se
em meio a uma tensão entre a restrição colocada pelos limites lógicos e
tolos da máquina, que comentei até aqui, e algo que eu
agora chamaria de uma explosão de textos a serem
lidos – na realidade, muitas vezes, lidos indiretamente,
com a ajuda da extensão de olhos eletrônicos.
Para justificar o meu uso do termo “explosão”, vejamos três dados
brutos. Primeiro: hoje, 1º de março de 2018, devem existir na internet 4.24
bilhões de páginas [
Kunder 2018]
[6] – e estamos falando em “páginas” no
sentido (emulatório) de “páginas-web” (considere-se que, segundo um
curioso experimento feito em 2015, para se imprimir todo o conteúdo da
“web” naquele ano gastar-se-iam 305.5 bilhões de páginas de fato,
ou seja, páginas de papel; cf.
Dewey, 2015).
Em meio a esse volume, existiam, em 2014, 114 milhões de documentos que
podem ser considerados “acadêmicos”, segundo Khabsa (2014), apenas na
língua inglesa (desconheço pesquisa semelhante que vá além da documentação
em inglês). Para tornar a questão um pouco mais próxima da nossa reflexão
sobre as Humanidades, até 2012, 23 milhões de documentos (entre livros,
gravuras e manuscritos) haviam sido digitalizados apenas nas bibliotecas
institucionais europeias, segundo o levantamento de Peckel (2012) – o que,
por sinal, ainda correspondia então a cerca de 10% do patrimônio físico
desses acervos (levando a crer que, a permanecerem as condições atuais, esse
número só tende a crescer nos próximos anos).
Do muito que se poderia discutir a partir desses dados bastante objetivos,
faço apenas uma pergunta: como vamos chegar a ler isso tudo?
Alguém sentará frente à tela de um computador e consultará as 4 bilhões de
páginas-web disponíveis na internet em 2018, ou mesmo (para sermos menos
ambiciosos) os 114 milhões artigos acadêmicos disponíveis em 2014, até
encontrar um assunto que lhe interesse? Algum filólogo ou historiador
consultará os 23 milhões de documentos primários disponíveis em formato
digital só no contexto europeu em 2012 para selecionar os que lhe
interessem? Evidente que não. Pois não somos nós que organizamos os textos
colocados nas máquinas – são as próprias máquinas, que indexam, organizam, e
fazem os textos revelarem-se para nossas “buscas”.
Noutros termos: o arquivo textual disponível hoje “na internet” se
diferencia das outras formas de arquivo por se organizar fundamentalmente a
partir de uma lógica artificial (na qual, a partir de sua concepção, um
algoritmo ordena automaticamente os textos a partir de
instruções que podem se repetir indefinidamente), enquanto as formas de
arquivo construídas em épocas passadas eram organizadas por diferentes
formas de interferência humana. Essa interferência humana, certamente,
contou com instrumentos auxiliares (o glossário; o índice; o tombo); tais
instrumentos indexadores, entretanto, funcionavam sempre a
partir da vigilância cotidiana de alguém – um bibliotecário, um
arquivista, um filólogo – que, em algum ponto do processo, lia
o texto a ser indexado. A forma digital do arquivo, em contraste, pode
prescindir da leitura humana ao longo de todo o processo de indexação.
Assim, como sugeria acima, é só com a ajuda de olhos
eletrônicos que podemos pensar em dar conta do volume
absolutamente acachapante de textos a serem ordenados e “lidos” no
mundo hoje. Esta contingência, me parece, se soma àquela outra, mais
específica (da formação da leitura distante em contraponto à
leitura próxima), para conformar uma relação diferente entre
leitor e texto.
Desconfio que vivemos um momento paradoxal, em que nunca tivemos tantos
textos facilmente acessíveis para ler, mas que tornou impossível
ler. E isso é também um fator de transformação da nossa
leitura, e das nossas disciplinas. Pois, como humanistas, nosso ofício
sempre foi o de ler o mundo – mas o mundo não pode mais ser lido como antes;
tanto porque estamos precisando abandonar o sonho de ler tudo o que há para
ler, como sugeri – mas também por uma segunda razão, mais delicada: porque
os muros que separavam os diferentes lugares de leitura se dissolveram, de
forma que não temos mais a clareza do que, diante daquele imenso volume de
documentos dispersos, é importante ler, ou (sequer) indexar. O que é “da
nossa área”? Quais são os textos “fundamentais”? Quais são as
boas fontes? Em outras palavras – o que é, hoje, o “Arquivo”?
Podemos compreender “Arquivo” em diversos sentidos – aqui, estou
centralmente ocupada com um conceito discursivo, do “Arquivo”
compreendido como a construção social de uma ordenação da memória e da
leitura, e, portanto, sujeito à historicidade; em particular, remeto ao
conceito trabalhado por Michel Pêcheux em “ Ler o
arquivo hoje”
[
Pêcheux 1982]. Entendendo o “arquivo” em sua dimensão
discursiva mais ampla de "“campo de documentos
pertinentes e disponíveis sobre uma questão”, o autor discute os
procedimentos sociais e teóricos envolvidos na construção (e na
“leitura”) dos arquivos em diferentes momentos da história e na
atualidade – neste caso, em particular frente aos desafios trazidos pelas
tecnologias computacionais. Para ele, então,
...nos encontramos diante de uma nova divisão do trabalho
de leitura, uma verdadeira reorganização social do trabalho intelectual,
cujas conseqüências repercutirão diretamente sobre a relação de nossa
sociedade com sua própria memória histórica [Pêcheux 1982].
A ideia do “Arquivo” como um objeto social construído a partir de uma
“divisão do trabalho” de leitura inspira fundamentalmente a
reflexão aqui proposta: preocupa-me centralmente a posição dos humanistas na
divisão do trabalho de construção do Arquivo hoje (nos termos de Pêcheux), e
é nesse sentido que se colocam as perguntas, aqui sugeridas, sobre o modo
como as tecnologias computacionais de difusão do texto interpelam os
humanistas em seus ofícios tradicionais de “leitores” do Arquivo.
Considerando, ainda, que a dispersão e a porosidade dos objetos-texto é
parte fundante da natureza material do texto digital, não nos distanciamos,
nesse segundo problema, das questões em torno da materialidade do texto
digital, que condicionavam o primeiro). Como argumentei em Paixão de Sousa
(2013), a condição de transmissão e circulação de uma forma de texto faz
parte de sua definição material, e a condição de circulação do texto digital
é essa: volumosa; dispersa; porosa. Isso traz consequências para a leitura –
em particular se entendemos “leitura” no sentido proposto por Pêcheux,
pois
a difusão digital, pulverizando o primado da autoridade
sobre o objeto, desintegrou o portal regulador da circulação dos corpos.
Nesse novo ambiente, o erudito pode construir novas esferas de
circulação do saber; mas outros construirão outras esferas, em que
circularão outros saberes. Assim, os estudiosos especializados da
leitura e da construção do “arquivo” (no sentido de Pêcheux, 1994)
podem passar a se ver acompanhados de novos leitores e construtores do
arquivo. Pois o “saber escrever” (aqui no sentido expandido, não de
codificar a escrita, mas de escrever o arquivo, inscrevendo a memória)
saiu das nossas mãos, mais radicalmente do que saíra das mãos dos
escribas diligentes a serviço dos eruditos medievais para passar para as
mãos (máquinas) dos fabricantes de livros. Saiu de nossas mãos, de todas
as mãos, e de todas as máquinas: descorporificou-se [Paixão de Sousa 2013].
Assim, essa nova forma de difusão do texto – nova forma de sua produção,
circulação e leitura – ao conformar um novo objeto-texto, incorpóreo,
transforma nossa forma de estarmos atentos ao texto, como
discuto a seguir.
3 Formas de atenção
I think we are arriving at a moment when the form of the
attention that we pay to primary source materials is shifting from
digitizing to analyzing, from artifacts to aggregates, and from
representation to abstraction[7]
[Unsworth 2006].
Valendo-se do conceito de formas de atenção originalmente formulado
por Kermode (2016[1985]) para explicar a formação do cânone artístico e
literário, Unsworth (2006) propõe um breve, mas denso, histórico das diferentes
etapas da relação entre as humanidades e as formas eletrônicas do texto. Kermode
propunha, em seu trabalho clássico, que as diferentes formas da nossa atenção
sobre os objetos da nossa cultura mudam com o tempo, por conta de forças sociais
e históricas, e, com isso, trazem sempre novos objetos à vista, ao mesmo passo
em que “escondem” outros – formando, assim, o “cânone” de cada
momento. Mais que a ideia de cânone, ou de valoração cultural, a Unsworth
interessa debater as forças tecnológicas que moldam nossa relação com as obras
que, graças ao fato de terem sobrevivido ao processo descrito por Kermode,
“chegaram até nós” como fontes primárias (de fato: as obras que seguem
merecendo alguma forma da nossa atenção como fontes de estudo). É nesse contexto
que o autor coloca a ideia de text-as-tools, o
texto-ferramenta, como o objeto a ter merecido atenção
primordial da computação em humanidades desde os anos 1940 (um corpus eletrônico
anotado seria, talvez, o exemplo mais bem-acabado do “texto-ferramenta”).
Entretanto, para ele, nossa forma de atenção ao texto digital estaria hoje se
deslocando de modo a enxergar para além do texto-ferramenta, passando a ver (e
criar) o texto-jogo, text-as-game, um objeto lúdico em
estado latente, que ele já antevê (embora desconfie que trará algum incômodo ao
ambiente acadêmico tradicional). É como entendo a passagem da
representação para a abstração, o último passo do
deslocamento da forma de atenção das humanidades ao texto digital segundo
Unsworth, e que será essencial para que eu termine, mais à frente, a reflexão
aqui proposta sobre nossas novas formas de leitura.
Entretanto, esse breve resumo da reflexão proposta por Unsworth (2006) em torno
do texto-jogo parecerá remeter a um mundo inacreditavelmente
utópico, quando a maioria de nós, humanistas, ainda acreditamos que um livro em
uma tela de computador não passa de uma instanciação de um livro feito de papel,
apenas visto em outro lugar. De fato, é tão profundo o grau de
elaboração artificial em torno do objeto-texto no ambiente digital, que
poderíamos dizer que o que temos hoje, no texto digital (e em seu ambiente de
circulação), mais que nada, uma emulação de texto (e de um ambiente de
circulação). Essa contingência da difusão digital do texto como uma emulação do
ambiente não-digital faz com que seja pouco surpreendente que ele opere, quase
sempre, dissimulando o digital, simulando o livro físico e o ambiente de leitura
do mundo físico. Essa emulação, esse não revelar de um simulacro de
leitura, fazem parte do caráter alienante das tecnologias digitais, que nos
fazem sentir, a cada passo, que estamos diante de bibliotecas, de livros, com
páginas que podemos “folhear” na tela – quando estamos diante de uma
máquina que apenas nos envia sinais para nos convencer de que são textos. É
nesse sentido que uso, acima, o termo “alienante”: estamos imersos em uma
lógica de produção textual cujas etapas fundamentais, em termos materiais,
escapam à nossa percepção; e essa dissimulação faz parte da lógica interna do
sistema de produção material do texto.
É razoável propor que enquanto estivermos presos a essa emulação, não
conseguiremos entender a mudança na forma de atenção ao texto, e nos sentiremos
perdidos, enquanto leitores, enquanto organizadores, e enquanto produtores do
“texto”. Como leitores, aqui estamos diante daquilo que nos é feito ver
como “textos”; assim é que temos por diante 114 milhões de
artigos em periódicos eletrônicos, e nos comportamos como quem tem diante de si
algumas tantas revistas em papel, a serem lidas concentradamente, uma após a
outra, com uma calma que ficou perdida no tempo. O fato é que seguimos na
emulação/simulação de que “vamos ler as coisas”, quando o que mais fazemos
é selecionar, das telas iluminadas dos nossos computadores, pequenos trechos,
aqui e ali, do que outros escreveram e que conseguimos salvar
(termo, em si, muito interessante) em meio ao dilúvio de palavras que “a
internet” nos faz chegar em casa todos os dias.
É também em meio a esse dilúvio informacional que ainda tentamos nos equilibrar
como organizadores e editores do texto, na nossa tradicional função de
levar os textos ao mundo (na etimologia, “ēditor”, de
“ēdere”, “expulsar, colocar para fora”). Não os textos que nós
mesmo escrevemos – mas sim, a tradição da nossa cultura escrita, de que nós,
como humanistas, nos arvoramos como guardiões e transmissores. Vamos lembrar que
os humanistas construímos os instrumentos para a humanidade se ler
– tanto aqueles entre nós cujo trabalho é dar textos à leitura, como aqueles
cujo trabalho é explicar o texto, como aqueles cujo trabalho é ordenar o mundo
dos textos. É isso que fazemos, tradicionalmente – mas diante dos milhões de
documentos históricos digitalizados hoje, por exemplo, o que estamos fazendo,
quando sequer estamos participando da organização desse volume insondável de
palavras escritas soltas na rede?
Volto neste ponto à minha anedota inicial. Quando, em 2012, preparava meu
gabinete de maravilhas para acompanhar os trabalhos de um grupo de leituras em
torno da “Prosa do mundo”, eu não conhecia o projeto
“La Bibliothèque Foucaldienne”
[
Artières and Berg 2010], no qual pesquisadores da Universidade de Lyon
haviam reunido, em um banco de dados, todas as notas de trabalho de Foucault e
toda a bibliografia usada pelo autor em suas obras, com resultados oferecidos à
consulta pública. Assim, tudo o que eu fiz sozinha, garimpando “a internet”
por dias a fio, estava na “Foucauldienne” –
organizado, sistematizado, curado. Ter conhecido este trabalho antes de
organizar minha pequena “Foucauldiana” para os alunos teria me poupado
imensos trabalhos; meu garimpo, portanto, não parece ter sido muito eficiente.
Em minha defesa, em experimento recente, ao buscar pelo termo “Foucault” no
buscador Google, a máquina me respondeu com mais de 26 milhões de resultados – e
nenhum deles era a “Foucauldienne” de Lyon (ao menos,
nas 44 páginas que ela me deu a ler). Assim, não é apenas para lamentar
profundamente esta falha que puxo o caso para esta conversa – e sim para
ilustrar a questão do deslocamento, ou movimento, das formas da nossa
atenção.
Pois – qual é, afinal, a
janela pela qual os leitores enxergam o
dilúvio de textos digitais? Nesse ponto não podemos nos iludir: a organização do
texto digital, quer estejamos falando de uma notícia de jornal, de um documento
medieval cuidadosamente digitalizado por uma biblioteca universitária, ou do
conjunto dos cadernos de notas de Michel Foucault, está a cargo do
“Google”. É “no Google”, não nas bibliotecas, que os leitores procuram
textos.
[8]. Por ora,
surpreendentemente, quase todos parecemos estar bastante tranquilos em saber que
algoritmos produzidos por grandes corporações multinacionais são, hoje, os
principais responsáveis por ordenar as palavras legíveis no mundo.
Na outra ponta do dilúvio informacional estamos nós como “produtores” desses
estranhos objetos que emulam textos, que se multiplicam como vírus pelo mundo em
forma de sinais elétricos, e que enviamos na esperança de que algum dia alguém
vai sentar em uma mesa e, efetivamente, ler. O preocupante nesta
ponta do processo, e que trago como ponto final para esta conversa, é algo a que
G. Crane, D. Bamman e A. Babeu já se referiram de modo muito preciso ao comentar
os impactos do digital na área dos estudos clássicos:
Digital technology is hardly new in classics: there are full
professors today who have always searched large bodies of Greek and Latin,
composed their ideas in an electronic form, found secondary sources on-line
and opportunistically exploited whatever digital tools served their
purposes. Nevertheless, the inertia of prior practice has preserved intact
the forms that evolved to exploit the strengths and minimize the weaknesses
of print culture: we create documents that slavishly mimic their print
predecessors; we send these documents to the same kinds of journals and
publishers; our reference works and editions have already begun to drift out
of date before they are published and stagnate thereafter; even when new,
our publications are static and cannot adapt themselves to the needs of
their varying users; while a growing, global audience could now find the
results of our work, we embed our ideas in specialized language and behind
subscription barriers which perpetuate into the twenty-first century the
miniscule audiences of the twentieth[9]
[Crane et al. 2008, 1–2].
“Estamos perpetuando, nó século 21, o minúsculo público
leitor do 20” – este alarme de Crane et al. (2008) tem consequências
mais importantes do que pode parecer à primeira vista. Pois se há de um lado,
como vimos, o problema de estarmos afogados no mundo da informação e não
conseguirmos nos mover direito dentro dele (como se, na analogia da biblioteca
de concreto e do livro de papel, estivéssemos caminhando em círculos, exaustos,
pelos corredores de uma biblioteca grande demais para as nossas pernas), de
outro lado, e de modo correlato, nós não estamos sendo lidos. Pois
tudo o que escrevemos acaba também se dispersando antes de encontrar os leitores
perdidos em seu próprio afogamento. O que há de errado?
O que nos falta, desconfio, é darmos o passo final na radical transformação da
nossa maneira de enxergar esses nossos objetos de trabalho, os textos – e que
nos leva de volta ao
texto-jogo de Unsworth (2006). Tomo o
texto-jogo de Unsworth como o exemplo mais bem acabado do que
eu chamei anteriormente de texto
descorporificado – pois esse seria
o texto que não precisa mais se limitar a
aparecer como texto: pode
ser imagem, pode ser cor, pode ser som – pode, efetivamente, “falar com seus leitores”, nos termos de Crane et al.
(2008). Esses autores defenderam que há uma diferença radical a separar o mundo
da difusão digital e o mundo do papel, como já mencionamos; e trazem também um
ponto central para este momento final da nossa conversa: a diferença entre o
texto como objeto “fixo” (no papel) e o texto como objeto “móvel” (no
ambiente digital). É essa, para eles, a singularidade do texto no ambiente
digital – e a exploração ativa dessa singularidade deveria ser a prioridade da
produção textual acadêmica hoje:
The question that we face
is much deeper than the challenge of producing more or, preferably, better
articles and monographs. We must more generally ask what kind of space we
wish to produce in which to explore the linguistic record of humanity –
whether we are contemplating the Odyssey, administrative records from Sumer,
or tracing mathematical thought through Greek and Arabic sources. More
important perhaps than the question of what we can do may be the opportunity
to redefine who can do what – to open up intellectual life more broadly than
ever before and to create a fertile soil in which humanity can cultivate the
life of the mind with greater vigor and joy.
[10]
[
Crane et al. 2008, 4] (meu grifo)
Assim, seria interessante que fossemos capazes de absorver as novas formas de
circulação do texto na nossa produção acadêmica, abandonando os limites da
emulação do impresso, para produzir formas textuais que possam ser efetivamente
organizadas, encontradas, e
lidas. Mas isso nos leva a um último
alerta – pois essas novas formas textuais fugirão, inevitavelmente, ao nosso
controle. Ou, nas palavras otimistas de Crane et al. (2008), esse processo irá
“abrir a vida intelectual como nunca antes”. O
problema, como coloca Eggert (2010) de modo extremamente contundente em
discussão correlata, é que, nesse processo, tememos ver os bárbaros invadirem
nossa cidadela:
...this vision of a common, interactive type
of scholarship and readership that democratically puts the reader in a
box-seat while also empowering the scholar to make and sign more expert
editions, doing much of the discovery work for us, is a very attractive
prospect. We should not fear the barbarians entering the gates of the
scholarly city. They have usually got less arduous things to do anyway, and
even when they do decide to interfere (as in contentious passages from books
of the Bible whose wordings they object to) or even if they are empowered to
make their own editions, my response is: Let them!
[11]
[
Eggert 2010, ¶51–52] (meu grifo).
Enquanto temermos “os bárbaros” – debatendo nossas premissas, e (o horror!)
apontando lapsos nas nossas transcrições – não nos aventuraremos nos
experimentos da textualidade móvel vislumbrados por Crane et al. (2008), nem a
qualquer tipo de “leitura e produção acadêmica pública e
interativa” tal como proposto por Eggert (2010), e, muito menos, ao
texto-jogo de Unsworth (2006). Continuaremos seguros; mas,
talvez, ignorados do lado de fora do muro – continuaremos, de fato, não sendo
lidos. E no avesso, ao fecharmos os olhos para a barbárie do
outro lado do muro, nos distanciaremos da nossa tarefa milenar de organizar a
palavra escrita; ficaremos seguros, mas não seremos mais os leitores e
escritores do “Arquivo” no sentido de Pêcheux (1994[1982]) – ou seja: já
não seremos aqueles que inscrevem a Memória.
4. Por fim
No começo desta conversa, entre muitas perguntas, questionava-me como podíamos
ler a “Prosa do Mundo” hoje, e que quadro nos
permitiria operar uma ordenação dos seres e das “coisas”, inspirada pela
experiência marcante da leitura de As Palavras e as
Coisas pelo olho eletrônico de um navegador na rede mundial de
computadores. Chego ao final da conversa sem a resposta, mas com a desconfiança
de que o espaço que ordena a “Prosa do mundo” hoje já
não é um espaço fisicamente delimitado – em contraste com os espaços da leitura
até pouco tempo, limitados, por exemplo, pela nossa possibilidade física de
percorrer bibliotecas feitas de concreto para encontrar o que ler. Nossa
“tábua de trabalho” agora não é um espaço no mundo físico: nela,
potencialmente, podem se encontrar todos os livros, todas as imagens, todas as
palavras, e todas as coisas do mundo.
De um ponto de vista discursivo, como argumentei, vemos instaurarem-se assim
novas formas de leitura que transformam as formas de atenção que
podemos dirigir aos nossos objetos de trabalho. Busquei aqui salientar a
importância de compreendermos a nova realidade material do texto
(esse instrumento e objeto da atenção privilegiada das Humanidades); e tentei
considerar como parte dessa realidade material todo o processo que envolve a sua
produção, difusão e leitura. Defendi, assim, que essa dissolução dos limites
físicos da leitura e do texto conforma um novo estado discursivo para as
Humanidades.
Os desafios colocados por esta nova conformação das Humanidades frente às
tecnologias de difusão digital da informação vão muito além do que o debate
sobre as chamadas
Humanidades Digitais pode fazer crer. Esse debate
não é inteiramente alheio às questões discutidas aqui – mas é, talvez, apenas
uma faceta particularmente visível do problema maior. Como tenho proposto em
outras oportunidades (particularmente, em
Paixão de
Sousa, 2015), o debate em torno das humanidades digitais tem estado,
muitas vezes, preso ao âmbito terminológico em torno das
Digital
humanities. Entretanto, como mostramos em Priani Saisó et al. (2014),
esse termo não apresenta uma consistência de uso no espaço – sendo as
Humanidades digitais, bem como as
Humanidades
digitales, um significante muito menos presente no mundo lusófono e
“hispanohablante”, mesmo entre pesquisadores cujos trabalhos envolvem
intenso uso de tecnologias computacionais em humanidades. Assim, poderíamos
aproveitar alguns dos apontamentos críticos sobre as humanidades digitais para
essa reflexão mais ampla, em particular os que têm levantado a importante
questão do anglocentrismo e da desigualdade dentro do campo (
Fiormonte, 2012,
2014;
Dacos, 2013). Quanto àqueles que
tem abordado as humanidades digitais como uma tendência passageira [
Marche 2013], se formos além do que se oculta no rótulo
Humanidades Digitais, veremos que as questões não são tão
facilmente dispensáveis – pois o problema não é de tendências, e sim é trazido
pela inserção do trabalho em Humanidades na lógica da difusão digital do texto,
uma realidade presente e agente, quer gostemos dela, quer não. Por isso tudo,
não me parece exagerado afirmar que a inclusão das tecnologias digitais de
difusão da informação está transformando as Humanidades de uma forma radical e
profunda, como já afirmaram Unsworth (2001, 2006), Crane et al. (2008), e
Baumann & Crane (2010).
Para finalizar, sugiro que precisamos compreender essa nova forma da ordem do
mundo dos textos, para sermos – os
humanistas – um pouco mais
sujeitos e um pouco menos objetos dessas transformações. Assim, se estamos
diante de uma nova forma de leitura e de ordenação do texto, precisamos resolver
que papel teremos nessa nova ordem – nessa nova forma do “Arquivo”, nos
termos de Pêcheux (1994[1982]). Esta é a encruzilhada em que nos encontramos,
como resultado de uma transformação profunda na natureza do nosso instrumento
principal de trabalho, o objeto da nossa mais dedicada atenção – o texto. Em
alguns casos, não só o texto, mas o texto antigo, preservado dos efeitos do
tempo e trazido até nós por diferentes modos de difusão (e formas de atenção)
por milênios – e que ainda hoje, me parece, é nossa tarefa preservar (e
explicar, e organizar, e trazer à luz). Independente dos rumos de cada campo de
estudos específico no interior das Humanidades, o texto nos está chegando, e
continuará a nos chegar, na forma digital – nossos documentos, nossos “objetos
de atenção”, estão sendo rematerializados em arquivos eletrônicos que
armazenam sequências de números. Isso levou alguns autores a enxergar, de fato,
uma revolução documental, num processo de
desconstrução da própria
noção de documento [
Gradmann and Meister 2008], ou
fragmentação da
unidade documental
[
Chaudiron and Ihadjadene 2008], ou
redocumentarização
[
Pédauque 2004]
[12], em propostas
que seriam plenamente desenvolvidas em Pédauque, 2006, 2007.
Cabe a nós decidir que postura queremos ter diante disso: se queremos ser
afogados pelo dilúvio da transformação material (aparentemente ainda crescente)
dos milhões de “documentos” (i.e., arquivos de informações numéricas)
dispersos em bancos de dados codificados, ou se queremos compreender as
condições tecnológicas e históricas dessa rematerialização, e ressignificá-la
dentro das nossas disciplinas – e talvez com isso, reversamente,
ressignificarmos nossas disciplinas, absorvendo as novas formas de trabalhar o
texto. A incursão ao reino da técnica computacional, assim, demanda das
Humanidades uma autoanálise crítica, já que nos obriga a fiar com novas fibras
aquele fio com que se forma o tecido do trabalho das “ciências humanas”: o
fio dos nossos olhares de leitura e dos nossos mecanismos interpretativos.
Resumo. Nesse texto proponho uma reflexão sobre alguns efeitos trazidos pelas
condições materiais de difusão do texto digital para as Humanidades, em
particular no que remete a novas formas de leitura e de ordenação da leitura.
Partindo de observações sobre a dispersão do texto no meio digital, investigo
materialmente as formas de produção e ordenação do texto nesse meio pontuando
como singularidade fundante a inclusão de uma etapa lógica artificial em seu
processo de difusão (a partir de propostas já delineadas em Paixão de Sousa,
2017). Essa contingência, argumento, permite considerar a difusão digital como
etapa radicalmente nova na história da escrita e da leitura, em sentido
semelhante aos apontados por Pédauque (2004, 2006, 2007); Crane et al. (2008,)
Gradmann & Meister (2008), Chaudiron et al. (2008), e Baumann & Crane
(2010). Sugiro ainda (a partir do conceito de formas de atenção
trabalhado por Unsworth, 2006) que, ao moldar novas formas de leitura, essa
mudança no sentido material do texto altera profundamente o trabalho tradicional
nas humanidades, instaurando uma nova conformação discursiva para o campo.
Defendo, por fim, que essa nova condição deve ser motivo de reflexão crítica nos
diversos âmbitos das humanidades, mas especialmente naqueles que têm, no texto,
seu objeto central de atenção.